AUGUSTO RAÍNHO
ou a angústia de representar

O acto de fotografar nasce como analgésico contra a angústia da perda. Tal como, noutros tempos, a pintura ou a escultura e, mais tarde, o cinema (fotografia em movimento). Pouco fiados nas capacidades de retenção da nossa memória cerebral, tentamos encontrar outros meios de preservação da realidade, verbais ou nem tanto. Desencantados, talvez, com o carácter escorregadio das palavras, deixamo-nos seduzir pela imagem, que nos garante, à partida, como a música, uma maior universalidade, em maiores e melhores hipóteses de conservação e de transmissão ao futuro.
Enganamo-nos... Ícone ou metáfora, signo ou alegoria (mesmo involuntários), a fotografia submete-se às regras da representação. Como a escrita, tentando resolver uma angústia, será sempre fonte e núcleo de outra angústia tangente. Queremos repetir por meios mecânicos ou electrónicos uma existência passada - sabendo de antemão que ela nos será devolvida apenas como fragmento, como relíquia ou como fantasma. Já Roland Barthes, num dos seus melhores livros (quiçá mesmo o melhor, A Câmara Clara) o afirmou...
Para fugir a esta angústia representativa (na fotografia, como em qualquer outra forma de expressão verbal ou não-verbal), parece só existir uma saída: a destruição da mimésis, concretizada na transfiguração da realidade, na criação de realidades alternativas. Nasce então a Arte.

Olhar e Abraçar Castelo de Vide, livro de fotografias de Augusto Raínho, debruçado sobre a terra em que nasceu, revela tudo isto que vimos sugerindo. Se, por um lado, responde ao nobre dever de conservação da memória comunitária (festividades, rostos, hábitos, paisagens, dramas até...), por outro manifesta consciência de que o registo, mesmo fotográfico, é sempre parcialmente inviável.
Ao contemplarmos as imagens (belíssimas, sem excepção), guardamos no cérebro uma soma de pontos luminosos, centrais ou excêntricos às realidades representadas e conservadas. Mas, como informa o título do álbum, não devemos contentar-nos com essas visões. Devemos sentir, com o autor (os sentimentos são aí mediadores privilegiados entre o "leitor" e a "obra lida"), o abraço apertado dado ao real humano e físico representados. Há olhos que nos interpelam, ocultações que nos inquietam, movimentos que nos franqueiam entrada para outros universos, angústias que nos confrontam.
Angústia outra é a de Augusto Raínho quando, subrepticiamente, manifesta que nem os olhares nem os abraços o satisfazem. Por isso - para além do registo e da interpretação de Castelo de Vide e dos seus habitantes - teve necessidade de utilizar a câmara e os elementos disponíveis para apresentar uma imagem modificada da realidade, introduzindo-lhe a sua subjectividade (quase filosófica) para a tornar obra de Arte.
Terá resolvido a angústia inerente à impossível representação/reprodução do mundo? Nunca os analgésicos ou os anestésicos fizeram desaparecer uma dor. Por isso, os artistas não param de escrever, de compor, de pintar, de fotografar - em busca de uma serenidade que nunca alcançarão, mas de que necessitam como pão para a boca.

(Olhar e Abraçar Castelo de Vide, de Augusto Raínho, ed. Fundação Nossa Senhora da Esperança, 2007)

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