Caras amigas e caros amigos,

Gostaria muito de vos desejar individualmente
um Natal cheio de alegria e de paz.
Sendo isso impossível
(os leitores deste blogue já são alguns...),
mando-vos um abraço forte
e deixo aqui os meus desejos mais sinceros:
tudo de bom para vós!


artigo originalmente publicado na revista Espacio/Espaço Escrito

está agora disponível no


assim como a recensão




Boas leituras!
José do Carmo Francisco

A «árvore de Natal» de António Ferro e a «Trama»

Há coisas no mínimo misteriosas. Minutos depois de receber a mensagem de telemóvel com Rita Ferro a anunciar o facto de uma rua em Cascais passar a ter o nome de António Quadros, descobri uma nova Livraria Alfarrabista. A nova rua é perto do Hotel Cidadela e será António Capucho a fazer a inauguração. A «Trama» é um jovem estabelecimento livreiro que fica na Rua de São Filipe Nery nº 25B, ali ao Largo do Rato. Pois lá descobri um livro de António Ferro com o curioso título de Árvore de Natal. A editora é a Portugália e os desenhos são de Jorge Barradas. O livro é de 1920. Vejamos um poema que poderá ser para muitos de nós (como foi para mim) uma revelação. Por detrás do editor do Orpheu e do homem que deu um jeito para não se perder o tal livro do Fernando Pessoa (Mensagem) há uma voz poética. Vejamos o soneto "Madrugada":
«Tu vais ser mãe… Tu vais amanhecer…/ No teu ventre suave que se enflora / Eu sinto já prenúncios de uma aurora / O sol que, atrás das nuvens, quer romper/ Vais ter um filho de outro, meu amor / Tu que já foste mãe dum filho meu! /Um filho sim… Que o meu amor nasceu /Como um menino, no teu corpo em flor…/ Mesmo esse filho que tu vais gerar / É quase meu… Pois com o coração /É que o teu corpo o tem que imaginar / Lê esta sina, escuta esta adivinha: / Parecer-se-á com ele na expressão / Mas vai ter uma alma igual à minha!»
Há coisas no mínimo misteriosas. Com minutos de intervalo um rua nova com o nome de António Quadros em Cascais e um livro antigo de António Ferro numa livraria nova aqui ao pé do Rato.
AL BERTO E JOAQUIM CARDOSO DIAS
(Vislumbres de uma Amizade)


A grande maioria dos poetas, após a sua morte, tende a entrar num limbo que precede ou o esquecimento ou uma consagração duradoura. Numa sociedade como a nossa – em que a exposição pública nos grandes meios de comunicação social faz a notoriedade dos seres, mas nunca o seu génio –, a ausência física de um autor pode relegá-lo para as caves de um injusto (ou justo) esquecimento. A não ser que, previdente, tenha tratado em vida da sua presença póstuma, tenha deixado uma influência suficientemente forte para permitir uma continuidade temporal ou uma obra dotada de importância incontestável. Há ainda o caso de herdeiros diligentes ou de amigos bem colocados que, para não desmentirem as devoções manifestadas durante a presença biológica do poeta (seria vergonhoso reconhecer um erro ou uma amizade interesseira...), continuam a incensá-lo. Temos, depois, os casos (transversais) de necrofilia ou de antropofagia, em que certas hienas do meio literário aproveitam o silêncio de um autor morto para se banquetearem à vontade com a sua obra suculenta, manipulando-a ou mostrando dela apenas aquela parte que não incomoda ninguém ou, sobretudo, não macula a sua própria imagem de “especialistas”.
Existem sempre, é claro, os amigos e os leitores desinteressados que se encarregam de zelar pelo futuro da arte édita e/ou inédita dos seus poetas, mas esses pertencem a outro campo – e não é bom misturar o ouro com a trampa...
Reconheçamos, no entanto, com Fernando Pessoa: “o presente não vê para além do óbvio.” O futuro, às vezes longínquo, é sempre o grande juiz. O autor de Heróstrato ou a busca da imortalidade chega mesmo a afirmar: “Não é possível servir simultaneamente a nossa época e todas as outras, nem escrever o mesmo poema para deuses e homens.” E acrescenta: “Que as obras superiores acabam sempre por se evidenciar no decurso da sua futuridade é verdadeiro; mas também é verdadeiro que uma obra meritória de segunda categoria acaba sempre por se evidenciar na sua própria época. / [...] / Se o grande poeta aparecesse, quem aqui estaria para reparar nele? Quem poderá dizer se não apareceu já? O público leitor vê nos jornais recensões da obra de homens cuja influência e amizades os tornaram conhecidos, ou cuja subalternidade os tornou aceites pela multidão. O grande poeta pode já ter aparecido [...].”



Quer se goste quer não da poesia de Al Berto, todos temos a obrigação de reconhecer que o autor d’ O Medo tem, por enquanto, fugido ao limbo que sucede aos poetas mortos. Em parte porque foi/é um autor influente – com a sua poesia desmedida, de um confessionalismo torrencial, matizado por imagens surreais –, em parte porque os seus herdeiros materiais têm diligenciado pela contínua publicação e divulgação da sua obra (por vezes em edições que nada acrescentam à glória do autor, mas apenas ao pecúlio de quem recebe os direitos), em parte porque a sua personalidade transgressora mas afectiva deixou marcas fundas de amizade em seres que, desinteressadamente, pensam ser seu dever pugnar pela memória integral do poeta de Horto do Incêndio, mesmo que isso os obrigue a sofrer a hostilidade de alguns habitantes das trevas do nosso pífio meio literário.
Joaquim Cardoso Dias – autor de um auspicioso O Preço das Casas – pertence ao último grupo. Fiel a uma amizade intensa (“Al Berto [...] foi o mais perfeito dos amigos que a vida me ofereceu”), resolveu organizar um livro como forma de homenagem ao autor nos dez anos da sua morte. Sem interesses subreptícios. Apenas com o desejo de conservar a presença de um ser humano singular feito poeta. Apesar de, noutros tempos de maior inocência, não ter reconhecido a dura verdade das palavras de Pidwell Tavares (“Vivemos num país de merdas, Quim”), Joaquim Cardoso Dias vê-se obrigado a revelar no prefácio que “todos aqueles que de qualquer forma ou de todas as maneiras tentaram impedir a edição desta antologia [...] pensaram que este livro de homenagem a Al Berto seria um perigo explícito para as suas mentes perversas, circulares, mesquinhas”.
Dez Cartas para Al Berto, Dez Cartas de Al Berto é um belo livro, introduzido por um texto de Joaquim Cardoso Dias com passos comoventes. Discreto, atinge os seus objectivos. Entre as “quase duas centenas de cartas, postais, poemas, textos, recados, convites, confidências, desabafos, conselhos e tanta solidão”, o organizador escolheu uma dezena de missivas, de modo a apresentar “uma espécie de microbiografia” do autor, embora tendo o cuidado de seleccionar textos que não revelassem ou expusessem “entidades, acontecimentos ou situações susceptíveis de ferir ou desnudar atitudes, ressentimentos e interesses que se referem à vida privada de pessoas que conviveram com Al Berto”. Convidou ainda dez escritores (Alexandre Nave, Fernando Pinto do Amaral, Francisco José Viegas, José Agostinho Baptista, José Luís Peixoto, Luís Quintais, Nuno Artur Silva, Nuno Júdice, Tiago Torres Silva e Vasco Graça Moura) que aceitassem homenagear o poeta, comentando ou escrevendo a partir de cada uma das cartas, os quais produziram textos com género, intensidade e interesse muito diferentes.
Leitor assíduo de textos íntimos de artistas de todo o mundo, neste livro interessam-me sobretudo as dez cartas do poeta homenageado, reproduzidas em fac-símile e cuidadosamente transcritas. Se não constituem, de facto, uma “microbiografia” de Al Berto, estruturam-se enquanto retrato revelador, políptico com os traços sinuosos de Lucien Freud ou de Francis Bacon. Em todas elas, desnudam-se um imenso abandono e uma enorme melancolia, cortados apenas pela necessidade de intensificar um contacto epistolar e uma amizade que se estruturam enquanto analgésicos possíveis, enquanto dádivas: “é-me tudo tão indiferente, distante, aborrecido. mas por hoje basta de lamúria. tenho-te a ti, a quem escrevo, e que me dá imenso prazer fazê-lo. não devia queixar-me tanto.
Quem deseje conhecer um pouco melhor a verdadeira face do poeta que se refugiava por vezes em Sines – localidade com que tinha uma relação contraditória (“nada é como era há alguns anos. tudo se modificou. as pessoas voltaram a uma espécie de bimbalhice surpreendente. Aflitivo.”) –, tem neste livro documentos indispensáveis. Entre 30.07.1989 e 17.04.1997 existiu uma intensa amizade entre dois autores que, quando um dia for totalmente revelada nas suas epístolas, permitirá entender melhor não só os sujeitos escreventes, mas também o meio literário e artístico em que se inseriram. Vislumbre desse documento, estas dez cartas merecem o tempo devotado à sua leitura.
Duas frases de Al Berto ficam na cabeça, talvez como máximas de vida. Conhecemos a doença que o afectava quando as escreveu, meses antes de morrer. Mas, mesmo assim, teimam não sair da memória: “Apenas o silêncio... depois da barafunda. Olhar para dentro e limpar... limpar – apenas o silêncio.”


Joaquim Cardoso Dias (org.)

Dez Cartas para Al Berto, Dez Cartas de Al Berto

Quasi Edições, 2007

Tempo do Advento


Fui buscar a minha filha ao infantário. Havia, por todos os espaços, enfeites de Natal. Fitei paredes e recantos. Barbas e mais barbas, árvores fingidas – mas do eixo e justificação da festa da Natividade, nem sombras. Do Menino Jesus, que tanto agradaria aos petizes (um entre iguais, pensariam...), nem vestígios. À entrada da sala da Sofia vi um conjunto de anjos, cada um com o nome de uma criança. Foi fraca compensação.
O cenário repete-se um pouco por todo o lado. Deus Menino é sinal de escândalo. A sua pobreza, fonte de fortaleza, não se encaixa na sociedade de consumo, onde todos somos vítimas de um anti-Cristo chamado “Economia”, que nos quer fracos e alienados. É preciso esconder (manipular, ridicularizar até) essa frágil criança que (se) tornou Deus presente. A ameaça é muito perigosa para o comércio do mundo.
Entrei em casa irritado. Tentei esbater esse mau sentimento com a leitura de um livro do poeta congolês Alain Mabanckou, Tant que les arbres s’ enracineront dans la terre. As suas palavras vieram no entanto ao encontro do que não me saía da cabeça. Traduzo: “eis que veio o tempo dos risos hipócritas / o tempo da mediocridade servida com todos os molhos / o tempo em que o homem já não descende do macaco / mas a ele retorna / o tempo dos vendedores ambulantes de quimeras / o tempo dos aprendizes de feiticeiro // eis que veio o reino dos homens vestidos de mentira / os novos Sísifos transportando o rancor / como insectos apocalípticos / condenados a rebolar trampa até à margem seguinte”. O bálsamo deste poeta vem da natureza (“eis contudo a montanha altiva / orgulhosa da sua altura // eis a montanha da alma / silenciosa guardiã da imensidade // eis a montanha que se cala há séculos / deseja apenas uma nesga de céu azul / erva sempre verde / orvalho matinal / um rebanho a pastar nas suas cercanias / pássaros de todas as espécies / a cantar”). As imagens de despojamento seduziram-me – sobretudo essa “montanha da alma”, tão ligada à espiritualidade de São João da Cruz – mas não me satisfizeram completamente.


*


Dia santo. Conforme a tradição recebida dos antepassados serranos, pus-me a preparar o presépio. Não tinha musgos, nem me dispus a comprá-los na florista. Os musgos precisam de pedras – e as que existem nesta minha colina de exílio não prestam para o seu crescimento. Reciclei a caixa dum brinquedo, oferecido à Sofia no dia do seu baptizado, para montar o altar doméstico ao Deus Menino. Peguei em cavacos de azinho e ramos de sobreira para criar um cenário plausível. (Cheira a Serra de São Mamede... Anestesia a distância...) Dispus as peças, este ano de marfinite, bonitas mas sem arte, resistentes contudo aos possíveis avanços de uma bebé activa (as de barro ficaram a espreitar no móvel). Terminado o trabalho, dei por mim reconciliado. Pelo menos aqui tentamos que as coisas sejam de outra maneira.
Folheando livros na biblioteca, veio ao meu encontro um velho conhecido, Antonio Colinas. Involuntariamente quase, pus-me a traduzir um poema seu que – talvez sem querer – me desejou um tempo do Advento tranquilo. Com a mesma intenção aqui deixo. Desejo-vos dias felizes “Com o Deus escondido”:
Uma mulher e um homem ardem no seu silêncio. / Que faze-mos tu e eu / aqui, nesta penumbra? // Tu escutas o meu silêncio / e eu escuto o teu, / e até parece que esquecemos / essoutro silêncio deste lugar sagrado / pelo qual estamos aqui, em princípio, / sem sequer sabermos para quê. / Talvez seja por esta ignorância, / pela qual decidimos ir cerrando os lábios, / e cerramos os olhos como se / nada nos importassem as nossas vidas e o mundo. // Uma mulher e um homem ardem no seu silêncio, / buscam no seu interior / o que não encontram fora: / o escondido deus, o deus desconhecido, / esse ser, ou esse espírito ou silêncio, / que se cala mais do que ninguém há muitos séculos? / Ou fala-nos oscilando na chama do altar? // E, no entanto, há entre tu e eu / uma gozosa atmosfera, / pois algo vem e vai entre os nossos corpos, / da tua mente para a minha mente, / dos teus olhos fechados para os meus olhos fechados, / do teu silêncio para o meu silêncio. // Talvez o que flui de maneira tão doce / seja essoutro silêncio / do deus desconhecido que se esconde, / mas que, por vezes (é certo!), nos envolve / como fogo, pois vai e vem como música, / recorda-nos e prova-nos / que estar contigo aqui, / que viver é, simplesmente, um milagre.
AMADEU BAPTISTA
VENCE "PRÉMIO DE POESIA NATÉRCIA FREIRE"



O poema seguinte, que agradecemos a Amadeu Baptista, faz parte do seu livro "Poemas de Caravaggio", galardoado há poucos dias com o Prémio Nacional de Poesia Natércia Freire 2007, promovido pela Câmara Municipal de Benavente.
Nesse concurso, foram atribuídas Menções Honrosas às obras "Principia Matemathica", de Carlos Rodrigo da Silva Vaz, "As Limitações do Amor são Infinitas", de Rui Costa, e "A Educação do Mal", de Fábio Nunes Viana Mendes Pinto.
O Prémio Nacional de Poesia Natércia Freire, no valor de cinco mil euros, foi atribuído pelo segundo ano consecutivo, e é patrocinado pela Companhia das Lezírias.
Amadeu Baptista nasceu no Porto em 1953. Frequentou a Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e tem colaborações dispersas em vários jornais e revistas nacionais e estrangeiros. Poemas seus foram traduzidos para Castelhano, Italiano, Inglês, Francês, Hebraico e Romeno. É divulgador em Portugal de poetas espanhóis e hispano-americanos. Está representado em diversas antologias e livros colectivos. Publicou “As Passagens Secretas” (1982), “Green Man & French Horn” (1985), “Maçã” (1986) (Prémio José Silvério de Andrade - Foz Côa Cultural, 1985), “Kefiah” (1988), “O Sossego da Luz” (1989), “Desenho de Luzes” (1997), “Arte do Regresso” (1999) (Prémio Pedro Mir, na categoria de Língua Portuguesa, México), “As Tentações” (1999), “A Sombra Iluminada” (2000), “A Noite Ismaelita” (2000), “ A Construção de Nínive” (2001), “Paixão” (2003) (Prémio Vítor Matos e Sá e Prémio Teixeira de Pascoaes 2004), “Sal Negro” (2003), “O Som do vermelho - Tríptico Poético sobre pintura de Rogério Ribeiro” (2003), “O Claro Interior” (2004) (Prémio de Poesia e Ficção de Almada), “Salmo” (2004), “Negrume” (2006), “Antecedentes Criminais (Antologia Pessoal 1982-2007)” (2007) e “O Bosque Cintilante” (2007) (Prémio Nacional Sebastião da Gama 2007).








CARAVAGGIO: SETE OBRAS DE MISERICÓRDIA

(para Silvino Oliveira)

Uma atitude plástica indomável
e arrebatamento rítmico nas figuras,
eis o que me interessa transmitir:

sou panteísta,
e sei como nas cores há um luxo físico
que torna o que é palpável
imaterial

– de modo que o que faço
é da rua que vem,
para que se transfigure em dom de imanência
e a alma e o espírito se cumpram nos pigmentos
para que tudo seja obra compassiva,
como um enigma de arrebatamento.

A minha vida é a cor
– e o recorte que o relevo da luz
lhe introduz
serve para que o universo vibre
e uma tensão grandíloqua se estabeleça,
entre a detonação da tela
e o espectador,
num repto total,
esmagador.

Ouso o fascínio,
mas, mais do que o fascínio,
aspiro ao coração
dos que vêem a tela interiormente,
sendo que os olhos
acumulam sortilégio
para que o entendimento desmorone
a falsidade que nos cerca e mata.

Eis a encomenda:
um quadro de grandes dimensões
que patenteie
as sete obras de misericórdia corporais,
dando relevo aos justos, obviamente,
mas também aos pecadores,
já que cada um deles é cada um de nós,
se a nossa prudência souber dizê-lo
de modo a não ardermos na fogueira.

Deu-me trabalho, o esboço:
a caridade existe,
mas é tão raro vê-la
que um pintor não sabe onde encontrar
modelo adequado,
mesmo que vá de igreja em igreja
a cuidar que, de repente,
encontra exemplo para a missão.

Tentei de tudo. Tentei, até, de mais.
Mas os dias passavam, e as noites,
e não me satisfazia com o que via,
os palácios a abarrotar de nobres
sem magnanimidade, e os pobres
sempre mais pobres, a morrer à míngua.

O mundo, agora, é só hipocrisia.
E, por isso mesmo, a minha regra
é não ter regra nenhuma
– em busca da brandura
vou de sítio em sítio,
a procurar um sentido nos sentidos,
ou alguém que não difame,
ou que não roube.

Só posso pelo sonho exorcizar-me;
mas o facto é que na rua é que anda tudo
– abrindo bem os olhos, em lida
extenuante, mas de grande prazer,
basta só olhar em volta e ver:
e ver é uma arte que faz toda a diferença.
E assim foi que vi os anjos nesta esquina,
e uma profusão de personagens
a perfazer o périplo das obras
misericordiosas:

a visitar os presos,
a dar de comer a quem tem fome,
a enterrar os mortos,
a cuidar dos enfermos,
a vestir os nus,
a dar de beber a quem tem sede,
a dar pousada aos peregrinos.

Olhando o quadro, agora pronto,
exposto na igreja do Pio Monte della Misericordia,
em Nápoles,
entendo que é pelo arrojo
que vou bem
– e fico impressionado
pelo que faço dos temas,
e como os meus impulsos artísticos resultam
em explosões categóricas de beatitude
de que até eu me assombro.

Toda a beleza é transcendência,
afirmo, de mim para comigo.
No meu tempo poucos haverá
que isto entendam, embotados
que estão de dogmas e preceitos
em que se relega o mundo
e nada vive como a vida é.

Martinho tira a capa e dá-a a um pobre.
Uma jovem mulher oferece o seio
a um velho preso da sua miserável condição
matando-lhe a fome e aliviando-o
do desgaste do castigo.
Um diácono clemente
manda que os coveiros
abram a terra e sepultem os cadáveres.
Um jovem, em tronco nu, ampara os doentes.
Um Sansão, sequioso, dessedenta-se com água
que alguém pôs no maxilar de um asno.
E Santiago aloja os peregrinos
com a ajuda de um almocreve adolescente.

Eis o meu quadro, a que juntei,
sobre a multidão,
uns anjos
para que se saiba
que não são dos anjos as tarefas dos homens,
e que o que é possível pode até tocar-se
se estendermos a mão ao nosso semelhante
– mesmo que ninguém veja,
mesmo que fique no segredo dos anjos a nossa acção,
mesmo que a partilha seja, apenas, nossa
e que nada, nem ninguém, nos agradeça
o gesto,
o acto.

Chamo-me Michelangelo Merisi Caravaggio
e ignoro
se sou cristão, ou não.

No caso, interessa pouco quem eu sou.
Sei é que deixo nesta terra
uma pequena herança
de luz
e movimento
e cor
que me fará feliz
se os homens se lembrarem
que pior que o esquecimento é a ingratidão,
e que ser ingrato nesta terra é não estar ao lado
de quem na vida vai ao nosso lado

e é nosso irmão.
José do Carmo Francisco

Padre Abel Varzim
– Uma memória viva que não é totalmente «pura»


Nasci em Santa Catarina (Caldas da Rainha) no ano de 1951 e vim morar para Lisboa em 1966 para a freguesia de Santa Catarina. O pároco era o Padre Rocha que dava sempre uma galinha ao aluno mais assíduo da catequese. Não tinha grandes dotes oratórios e por isso muitos dos seus fiéis «atraiçoavam» a paróquia e iam à missa da igreja da Encarnação para ouvir o Padre Oliveiros. Eu tinha quinze anos e naturalmente lá ia com os meus pais ouvir as histórias do Padre Oliveiros que punha muita gente a chorar com as vidas dos santos mas nunca falava dos assuntos que verdadeiramente faziam chorar as pessoas: a guerra colonial e as perseguições políticas da PIDE. Estávamos em 1966, eu tinha acabado o Curso Geral do Comércio com boas notas e, por isso, tinha começado logo a trabalhar num Banco. Mas em Vila Franca de Xira, onde tinha vivido desde 1961 a 1966, eu tinha pertencido à Pré-JOC que era impulsionada pelo senhor Vladimiro, o entusiasta da JOC que se deslocava numa bicicleta de três rodas e falava muito do fundador da JOC (monsenhor Cardjan) e do Padre Abel Varzim. As nossas reuniões começavam sempre com uma oração lembrando o exemplo do fundador da JOC.

Só muito tempo depois é que descobri as memórias, por interpostas pessoas, do Padre Abel Varzim no Bairro Alto. Bastou algum convívio com os vizinhos aqui da freguesia para ficar a saber que eram dois os grandes campos da preocupação do Padre Abel Varzim enquanto pároco: as prostitutas e os rapazes. Tentou dar às raparigas da vida uma nova vida levando-as para a Amadora onde aprendiam a costurar. O Mário Correia que foi muitos anos presidente da Assembleia de Freguesia da Encarnação é uma testemunha viva desse trabalho que o Padre Abel Varzim desenvolveu aqui.
O Mário Correia fazia parte de um grupo de rapazes, eram seis, que iam à missa do meio-dia mas não se queriam integrar em nenhum grupo: nem Escuteiros, nem Acção Católicas nem JOC, nem JEC. Percebendo o que se passava, o Padre Abel Varzim abordou o grupo e levou os rapazes para a sacristia onde falaram à vontade. Acabaram por fundar um movimento paroquial que foi uma escola de vida para todos. Passados cinquenta anos todos recordam os teatros e os jogos de futebol que o Padre Abel Varzim organizava para os seus rapazes.
Num tempo cinzento e fechado, num espaço bafiento e cheio de sombras, o Padre Abel Varzim tudo fez para iluminar caminhos. Fazendo o essencial: informando. Num país dominado pela Censura informar era (em si) um heroísmo. Por isso mesmo a PIDE o veio incomodar em 1959 por causa de uma carta a Salazar na qual ele e alguns católicos denunciavam a brutalidade da PIDE. O ditador endossou a carta à mesma PIDE que veio incomodar aqueles que tinham denunciado as suas brutalidades. O Padre Abel Varzim já não estava na paróquia desde 1957 mas continuava activo.
A morte em 1964 veio interromper uma trajectória de intervenção mas a sua memória continua a ser venerada por todos os que tiveram o privilégio de acompanharem a sua acção em prol da justiça social. Mesma aqueles que, como eu, apenas o conheceram numa memória transmitida e não totalmente pura. Mas atenção: é uma memória que não é pura porque foi diluída e alterada pelo afecto daqueles que com ele privaram em directo.

Nicolau Saião
(imagem & texto)


CHAVEZ PERDEU O APITO


Nas urnas, o Povo venezuelano disse a Chavez como queria por lá o panorama político: sem mandantes vitalícios. A pouco e pouco o mito "índio" deste cavalheiro primário e demagogo, falso amigo do Povo e malcriadão de primeira, vai-se desfazendo. Este émulo de Cunhal, de Fidel e, agora, de Sócrates, verá a sua hipocrisia de assecla de Stalin quebrar-se contra a democracia. Porque, entendamo-nos: não é por ser a favor do pobre que é nefando. Não! É porque é contra ele, fingindo que é a favor. Como todos os demagogos fazem, a exemplo destes aparatchikis lusitanos que nos fritam a paciência. O que está mal, pois, não é haver gente de esquerda. É haver gente que disso se finge e é apenas totalitária. Como Chavez. Como Fidel. Como o senhor de cá.

Permitir-me-ão que solte um viva à democracia e à liberdade?