A ARTE DE DESERTIFICAR

Há cerca de quatro, cinco anos participei em Castelo de Vide numa tertúlia que tinha como eixo uma obra de José Luís Peixoto, então recentemente publicada. Inevitavelmente, o conteúdo do romance levou a conversa para a nossa visão do estado do Alentejo. A dado passo, um cidadão lisboeta com ar de hippie fora de prazo afirmou: “Eu cá gosto muito do Alentejo porque é deserto... tem pouca gente... Assim é que é bom!” Com visível incómodo, olhámos todos uns para os outros. O silêncio imperou. Até que um dos presentes respondeu ao dito indivíduo: “O senhor diz isso porque é um gajo bem amanhado, tem dinheiro suficiente para ir à capital a bons médicos, para encontrar por aquelas bandas o que aqui falta. Mas, e quem cá mora?” O forasteiro não retorquiu – nem poderia retorquir. E a conversa continuou, ignorando-o, sobre as causas do suicídio no Alentejo. Chegámos à conclusão de que o alentejano, quando perde a dignidade, mata-se, sacrifica-se. (E quanta dignidade lhe têm retirado, uns que “gostam muito do Alentejo” mas só sabem espezinhar quem por lá habita, outros que, sendo alentejanos, gostam de fomentar um viver social pequenino e dependente, o melhor meio para exercerem o seu caciquismo político, económico, social e/ou cultural.)
Tenho recordado muito a conversa do tal hippie fora de prazo a propósito de algumas medidas que os últimos governos têm vindo a publicar em Diário da República. Quem as vê de um apartamento alfacinha ou tripeiro pode até contemplá-las como benéficas. (Encerrar escolas até é bom, segundo afirmam, pois colocará todos os alunos num só edifício com todas as condições para o sucesso educativo. Obrigar homens e mulheres a deslocarem-se, em plena noite, a um centro de saúde fora da sua área de residência pode até ser positivo, pois terão cuidados de saúde que na sua terra não teriam. Obrigar as elvenses, por exemplo, a terem os seus filhos na maternidade de Badajoz até é porreiro, pois assim ficarão de uma vez por todas com a cidadania espanhola, que já vão adoptando quando preferem fazer compras na cidade do Guadiana. Extinguir freguesias e concelhos rurais até está bem visto – pois para que quer aquela gente junto de si uma junta ou uma câmara municipal, se a podem ter a trinta-quarenta quilómetros de distância...) Quem conhece bem o interior português sabe que estas medidas legislativas, levadas a efeito pelo governo de José Sócrates, mas idealizadas por políticos seus antecessores, são uma machadada fatal na dignidade de quem lá vive e, logo, um veneno mortal que aniquilará a vida de muitas aldeias e vilas portuguesas.
Claro que nada disto interessa a quem vê nas aldeias portuguesas fontes de rendimento. Têm até pena quando uma aldeia começa a ser muito habitada, pois nesse momento as casitas que até aí custavam trinta contecos passarão a valer 50 000 euros ou mais. Que lhes interessa a eles se as terreolas têm junta de freguesia, médico, posto de correios, farmácia ou escola, se os centros de saúde possuem atendimento permanente, se há uma maternidade próxima... As nossas aldeias são para eles pavilhões de caça ou campos de férias, lugares de passagem que eles transformam em não-lugares, sem vida, sem nada para além de um cenário ostentado para turista ver.
Os reis dos primeiros tempos da nossa história pelo menos legislavam no sentido de favorecerem a fixação das populações. Os nossos governantes fazem o contrário. Primeiro adubaram os caciques locais (que, diligentemente, pela sua passividade, pela sua mediocridade e pelo seu fechamento, fizeram diminuir a população residente no interior), esquecendo os habitantes das nossas vilas e aldeias, não pondo em prática quaisquer estratégias que contrariassem o êxodo. Agora, retiram a boa parte dos portugueses condições mínimas de dignidade – para que o esvaziamento se complete. Não tenhamos dúvidas: para muitos citadinos que vêem no mundo rural uma terra de cafres, o interior português será tanto mais atraente quanto mais se transformar num verdadeiro deserto.

2 comentários:

Luis Eme disse...

É de facto uma vergonha o que se está a fazer aos seres humanos mais dependentes (crianças e idosos), no interior, com o encerramento de tantas escolas e centros de saúde.

A história tratará de lhes responder, quando alguém estudar o número de crianças que abandonaram o ensino precocemente e o número de pessoas que faleceram ou viram agravados os seus problemas de saúde, por falta de assistência...

Anónimo disse...

é o que manos importa, a história, a esses filhos da puta.
tratemos é de os lixar, da única maneira que entendem, isto é po-los na rua.
tirar-lhes a mama. isso é que é.