José do Carmo Francisco

O fio de ouro, de Fátima Murta

Já se disse tudo da literatura. Pensamos nós. Já se disse que depois dos fornos crematórios de Auchwitz não seria mais possível a poesia. Já se disse muita coisa mas afinal ainda está muito por dizer. Desde logo cada abordagem à literatura é feita por cada pessoa em função da sua biografia, do seu passado, das suas circunstâncias. Recebi na minha banca de trabalho um pequeno livro de apenas 51 páginas. O título é O fio de ouro e todos os seus poemas tratam do tema da violência sobre as crianças. Chamou-me a atenção o poema «missiva ao rapaz com patas de urso» e aqui fica um pouco desse poema com toda a sua carga de testemunho transfigurado em arte: «Tão pesadas são as patas / do rapaz que me rasgou / uma costura de alfinetes / encostada ao frio / meia vergada sob o peso / do andaime das amarguras / tão grandes as tuas mãos / agarradas aos meus ombros minúsculos / tão pesadas as patas de urso / deformação genética antes do nascimento / feres-me os punhos como anilhas nas rolas / são pesadas, já disse, as tuas patas de urso / sobre mim que ocupo o espaço / entre dois dos teus dedos menores. /Todo tu és pesado a todo o meu corpo e alma / o Espírito brotou e logo foi cuspido num balde / És um rapaz já homem diferente de todos os rapazes / E tão igual a tantos homens à volta da terra / Não são as patas de urso / Eu gosto tanto dos animais! / É a força que anima as tuas patas de urso / e me sufocas os gemidos com elas e o seu peso / Se os meus gemidos se ouvisse na liberdade das árvores / Fariam chorar os pássaros adormecidos nos ninhos. / Não escolhi que sejas diferente como os monstros / não gosto da tua diferença de patas de urso. / Rapaz, tu cresceste! Nem eu sou mais uma menina com as tranças louras e longos lacinhos brancos a condizer com os sapatos»

1 comentário:

Luis Eme disse...

É de Facto um Poema Fabuloso!

Em qualquer Canto do Mundo (pois os rapazes das patas de urso são universais...).