NICOLAU SAIÃO

Começar bem o dia

Depois de uma noite bem dormida, sem pensamentos melancólicos sobre a lusitanidade e outros pesadelos afins, levantei-me “pronto para todas as viagens” como dizia Ungaretti.
Arranjei-me, fiz café, dei despacho a um niquinho de brandy e ia na segunda torrada bem fornecida de manteiga espanhola (pois, a “Flor del Alba”, uma marca que parece um título de Alarcon) quando senti o carteiro meter correio na caixa (oficial e cabal) que, ornamentada com o exuberante desenho duma corneta, tenho ao pé da porta do lar.
Fui logo buscá-lo, pois sou curioso como um cabrito ou um agente secreto (nacional).
Entre as tretas comerciais do costume, que seguiram logo para a “cesta secção”, estava um envelope identificado com o patronímico dum amigo.
Dentro, carreado por umas palavras adequadas e bem artilhadas, vinha um postal com uma paisagem de Estaque de Cézanne. Não esta que vai aqui e de que muito gosto, mas outra também admirável de entrosamento, que o raio do velho parece estar cada vez mais novo.
Como se tivesse sido pintada mesmo agora.
Só para ver os quadros do solitário de Aix já valera a pena ter vivido. Ele, que em nada influenciou a bonecada que eu mesmo faço – as feições dos progenitores não se discutem, aceitam-se como a raiz do próprio mundo – pois essa tarefa ficou para o Beckman, Soutine, Lee Krasner, Cy Twombly…, deu-me contudo uma força que continua a oxigenar-me a figura de dentro e de fora: o sentido dos limites, a certeza de que podemos ir até onde pensámos ir, pois tudo se contém no tempo que habitamos.
E gostaria de finalizar com a citação, absolutamente virtual mas pundonorosa, dum anúncio que aqui há anos fez escola e que talvez ainda esteja na memória de alguns: “Um Cézanne pela manhã ajuda-o a melhorar, descontrair e a divertir-se” …
Pois não!



CÉZANNE


Rabujento e disforme, tinha a alma
segundo alguém escreveu, dum vendedor de fruta.

Ainda bem, Cézanne

Foi há relativamente pouco tempo
que eu percebi que podia se quisesse
viver num quadro teu.

Velho, muito velho, o mundo grego
ficou mais limpo e exacto que uma batata descascada.

Amavas, sei-o bem, as bruscas planícies
a lonjura serena da montanha Sainte-Victoire
e a cor mais pitoresca, eternamente violada
dum corpo de banhista.

Fazias com que os médicos tivessem ar de anões

Nos teus quadros não havia simplicidade
havia exactidão
singularidade
havia tudo o que fazia falta.

Por isso me lembro muitas vezes de ti
principalmente quando acabei de jantar

maçãs, peras, laranjas e paisagens imóveis.


(NS in “Os olhares perdidos”, Universitária Editora)

1 comentário:

Teresa Lobato disse...

Belíssimo poema, perfeitamente a condizer com Cézanne.
"Ainda bem, Cézanne."