José do Carmo Francisco

Crónica para um menino
que também perdi


Escrevo-te, André, esta crónica triste descendo a Avenida Fontes Pereira de Melo no mesmo lugar onde há vinte e quatro anos chorei as lágrimas mais quentes e mais grossas pela morte do teu irmão Paulo. É esta estranha e repetida geografia citadina que me leva hoje a recusar as lágrimas e pensar em ti não no passado mas no presente.
Tenho em casa, algures perdida numa gaveta mas não perdida na minha memória, uma fotografia que tirámos na eira da casa da tua avó. É uma fotografia a preto e branco como, afinal, são todas as fotografias porque na verdade o nosso mundo não é a cores mas sim a preto e branco. Como aquela fotografia em que estamos todos felizes depois de um almoço de festa cozinhado naquele fogão que é um monumento culinário e naquela cozinha que é um santuário da gastronomia. Mais do que felizes, estamos juntos, todos juntos à volta da festa de aniversário da tua avó que eu abusivamente resolvi, entretanto, tomar como minha. Era Abril, o mês de todas as esperanças, depois de tantos anos de notícias censuradas, de músicas proibidas, de filmes cortados, de ruas sossegadas e de prisões cheias. Circulo hoje de mãos nos bolsos, cheio de frio e atónito perante a notícia da tua morte em Paris e a Avenida Fontes Pereira de Melo, onde soube da morte do teu irmão Paulo em 1982, esta avenida, transformou-se, de repente, num quadro cor de cinza onde o teu nome está escrito e não se apaga.
Quero que saibas, André, que continuamos todos naquela fotografia a preto e branco tirada à volta da avó na eira numa tarde de sol em Abril. Vamos continuar todos nessa fotografia porque ao lado da avó somos felizes e não há preço a apagar nem pelos beijos nem pelas lágrimas.

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