A MAE TINHA SIDO CONDENADA
POR ABANDONO E MAUS TRATOS
(crónica do poeta José do Carmo Francisco)


Neste texto, gostaria de focalizar a minha experiência como Juiz Social num Tribunal de Menores desde 1993 por oposição a um forte alheamento e uma enorme distanciação perante os Tribunais no tempo em que ainda havia estradas de macadame.
Quando eu era criança havia um grande medo; hoje o meu convívio com o universo dos Tribunais é quase permanente e não há uma quinzena em que não seja convocado para uma audiência de julgamento. Conheço os corredores, as salas de audiência, os funcionários, os juízes, os delegados do Ministério Público, os guardas da PSP. Por isso mesmo, porque já me considero da casa, é que tenho tido nos últimos tempos um maior à-vontade nos momentos de intervir e de projectar a minha opinião.
Gostaria de compartilhar com os meus leitores uma das mais recentes aventuras vividas por mim durante um julgamento. Não pela história em si mas pela moral que o caso encerra.
Tratava-se de uma mulher que, a todo o custo, queria os seus filhos, o mesmo é dizer – não queria que eles fossem adoptados por um casal que já há muitos anos andava à procura de encontrar nos Tribunais de Menores aquilo que a Biologia não lhe tinha dado. Pois essa senhora, que passava o tempo a dizer “Quero os meus filhos”, não sabia que nós tínhamos tido acesso a um processo de outro tribunal em que ela tinha sido condenada a nove meses de prisão efectiva por abandono e maus tratos aos seus filhos. Por outras palavras – ela saía de casa de manhã, ia para o café do bairro e eram as vizinhas que, por um buraco da janela, davam leite e flocos de cereais para eles não morrerem à fome.
Ora acontece que o Juiz que decidiu esse processo de abandono e maus tratos foi muito brando e transformou a prisão efectiva em pena suspensa. Só que nós também sabíamos a maneira como ela tinha agradecido ao Tribunal a sua generosidade: foi ter engravidado de um senhor que nem era o marido e pai das ditas duas crianças. Então estávamos ali num impasse: de um lado os Juízes Sociais a quererem que a criança fosse adoptada por quem já tinha esperado tanto tempo e se dispunha a integrar essas crianças no ambiente familiar dos seus sobrinhos; do outro lado o Juiz Presidente que insistia no facto de que a senhora “era a mãe”. As nossas posições eram irredutíveis: nem nós queríamos que as crianças voltassem à mãe nem o presidente do Tribunal queria que elas fossem entregues ao casal de adopção.
Mas havia um trunfo para desempatar: a intuição feminina da Delegada do Ministério Público. Ela tinha uma especial capacidade para, olhando para a pele da mulher, perceber que ela estava grávida. Então, no meio da formalidade e do rigor do julgamento, surgiu um factor desestabilizador quando a Delegada perguntou: “A senhora está grávida?” A mulher não respondeu nem era preciso. Todos nós vimos que o seu silêncio correspondia a uma resposta positiva. Ela estava outra vez grávida do tal senhor que não era o marido. A mancha na pele da sua cara não deixava dúvidas. Começou a soluçar e pediu para ir à casa de banho.
E tudo ficou resolvido. O Juiz presidente perdeu e desistiu da sua ideia à século XIX – “mas ela é a mãe”. Nós também não discutimos a questão em termos biológicos pois o que estava em causa era a sua competência para poder tomar conta dos dois filhos. Para nós foi decisiva a questão dos nove meses de prisão efectiva que afinal tinham passado a pena suspensa.
Nesse dia saí do Tribunal de Menores mais do que satisfeito; saí feliz com a minha persistência que, com o auxílio da minha colega “asa” e da Delegada do Ministério Público, tinha ajudado a derrubar o preconceito do Juiz presidente. Uma vez mais a Justiça prevaleceu contra o direito. Ser mãe não chega (não pode chegar...) para uma mulher ter os filhos a seu cargo.

(in Gazeta das Caldas, 16/12/2005)

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