MARIA ONDINA BRAGA (1932-2003)

DOIS PANOS DA CAMISA

Na dinastia Sung, século XI, já uma mulher aparece entre os melhores poetas da época: Li Quingzhao que cultivou o verso ci com extrema perícia e teve a sorte de encontrar no marido, além de um devoto amante, um camarada espiritual. Mas, se tal aconteceu com Li Quingzhao, quantas outras ausentes das páginas densas da literatura clássica chinesa?
E todavia uma sociedade baseada na erudição, a da China. Fidalgos, não de sangue, como no Ocidente, mas de saber. Intelectuais que, concluído o terceiro grau do exame literário, ganhavam direito a lugares públicos de destaque. Uma sociedade, enfim, baseada na erudição e na hierarquia masculina. Segundo Confúcio, a mulher, ainda que dotada, sempre havia de fazer o contrário do que o homem fazia, ou seja, enquanto ele construía, ela deitava abaixo [...].
Mesmo assim, ei-las a escrever, as chinesas desse tempo: líricas, loas, trocadilhos: Chao T’sai-Chi, Chão Li-Hua, de quem não se conhecem quaisquer dados biográficos:

Com a maré do rio a crescer
Avança a hora da separação.
As cordas dos salgueiros largam, ledas,
O barco onde embarquei meu coração.

Logo que na Dinastia Mongol o drama entra na ordem do dia – textos classificados de sub-literatura e geralmente editados sob anonimato – as suas mais fiéis seguidoras, as mulheres: Chang Kuo-Pin, por exemplo, ilustrada dama da corte do século XIII e autora de uma peça de teatro muito popular, em quatro actos, Os Dois Panos da Camisa. Escritos tidos por medíocres, é verdade, porque a cultura ao alcance delas medíocre também.
A cultura de uma mulher não se compara à do marido que, por assim dizer, se prolonga pela vida fora. (...) A mulher é como se fosse cedo arrastada por uma torrente (os deveres domésticos), sem qualquer esperança de voltar atrás, e de pouco lhe servem os conhecimentos que porventura haja adquirido” – comentário de Lang Ting Yuan no século XVIII. Precisamente quando um “estrangeirado”, Luís António Verney, escreve na Carta XVI: “Pelo que toca à capacidade, é loucura pensar-se que as mulheres tenham menos que os homens”.
Vemos, contudo, na Dinastia Tang, Liu Hsiang compilar em volume algumas biografias femininas, intitulando-as de Mulheres Eminentes. O primeiro trabalho desse género, na China, se bem que já duzentos anos antes se escrevesse sobre vidas de cortesãs famosas pelos seus dotes físicos e artísticos. [...]
Natural, ao tempo, um escritor celebrar as prendas de uma mulher pública e calar as da consorte. Os membros femininos da família, a sua sina, um submisso silêncio.
[...]
Li Quingzhao, portanto, uma rara excepção: poeta e epigrafista insigne, Zhao, o marido, admirando a esposa e admitindo mesmo que a poesia dela possuía uma riqueza que faltava à sua. Isto mal-grado o juízo desfavorável dos críticos quanto ao fervor da linguagem de Li: “licenciosa para uma mulher”.

Murcha a flor do lótus, tapetes de jade
A anunciarem do verão o fim.
Dispo devagar a túnica de seda
E entro sozinha no barco de mim.
Viesse um arauto lá do alto das nuvens
Com uma missiva terna e eloquente...
Os gansos selvagens partindo à noitinha,
E a Lua a arder no meu quarto a poente.

(do livro A Filha do Juramento, editado em 1995 pelas Edições Autores de Braga, comemorando os 30 anos de vida literária da Autora.)

2 comentários:

Ruy Ventura disse...

Esqueci-me de deixar expresso um agradecimento à Teresa Lopes, que me ofereceu o livro de Maria Ondina Braga de que transcrevi o texto. Um grato abraço!

Teresa Lobato disse...

Agradecimento e abraço aceites!...
Bem merece a Maria Ondina, tão esquecida que foi pelos nossos meios literários. E a sua escrita é tão rica...